quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Pé de guerra


Matéria publicada na revista Piauí


Pé de guerra






Já são quase 5 mil os signatários do manifesto The Cost of Knowledge [O custo do conhecimento], um boicote coletivo à Elsevier, a maior editora de revistas científicas do mundo. Os pesquisadores afirmam que não vão mais publicar nos periódicos do grupo e nem atuar como revisores – um trabalho que costumam fazer de graça.

Elsevier, grupo multinacional sediado na Holanda, publica cerca de 2 mil periódicos e teve em 2010 um lucro de 847 milhões de euros, ou mais de um terço da sua receita anual. A editora é acusada pelos pesquisadores de explorar o trabalho voluntário dos pesquisadores e cobrar preços extorsivos por suas revistas, obrigando muitas vezes as bibliotecas a assinar pacotes de periódicos, nos quais títulos menos relevantes são empurrados junto com revistas essenciais (qualquer semelhança com os pacotes das operadoras de TV a cabo não é coincidência).
A proposta de boicote reflete uma insatisfação antiga da comunidade científica com um sistema de publicação que ainda é majoritariamente fechado. Mas ela foi desencadeada por um projeto de lei dos Estados Unidos que impediria que pesquisas financiadas com dinheiro público tivessem acesso aberto um ano depois de publicada.
A Elsevier é alvo do protesto por sua visibilidade, mas o descontentamento dos cientistas se estende a outras editoras. “A Elsevier é somente a empresa que mais chama a atenção por essas práticas e pelo lucro exorbitante que tem, mas há algo de muito errado com todo o sistema de publicação de artigos científicos”, reconheceu o físico Ernesto Galvão, professor da Universidade Federal Fluminense e um dos signatários brasileiros do manifesto.
O projeto de lei e a reação dos pesquisadores já motivaram a publicação de dezenas deartigos e posts na imprensa mundial. Para citar apenas três exemplos colhidos na blogosfera brasileira, vale ler os textos de Carlos Orsi, que fez uma discussão minuciosa do contexto em que surgiu o manifesto, de André Rabelo, que apontou alguns caminhos possíveis para o futuro da ciência aberta, e de Átila Iamarino, que discutiu como os cientistas brasileiros podem se posicionar nesse debate.
Conteúdo aberto x fechado
defesa da ciência aberta reflete um movimento mais amplo pelo acesso irrestrito à informação em vários domínios. Na avaliação do médico e pesquisador da área de saúde pública Kenneth Camargo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), as editoras de periódicos se veem diante de uma crise que há anos assusta as indústrias fonográfica e cinematográfica. “Determinadas empresas se acostumaram com um modelo de negócios que está ameaçado”, avaliou o médico, que também assinou o manifesto. “Mas com o crescimento dos portais abertos como o Scielo, no Brasil, o PLoS e o Biomed Central, no exterior, claramente está se desenhando um campo de força oposto.”
Mas ainda não está claro qual modelo poderá substituir o sistema atual. Camargo – que é editor da revista brasileira Physis, publicada pela Uerj, e editor associado do American Journal of Public Health, dos Estados Unidos – lembra que, em alguns periódicos abertos do exterior, os autores precisam pagar uma taxa de publicação (os recursos acabam diluídos nas verbas de financiamento à pesquisa). Entre as revistas brasileiras de acesso aberto, a prática não é rotineira.
“Ainda dependemos de fundos da universidade e das agências de fomento para arcar com os custos de secretaria, edição, impressão”, disse Kenneth Camargo. “Enquanto não equacionarmos como isso vai funcionar, não está muito claro qual modelo econômico seguiremos no futuro. Mas não dá para ser esse modelo oligopolista.”
Soluções como o arXiv, repositório público de artigos muito usado por pesquisadores das ciências exatas, estão entre as mais citadas pelos críticos como possível modelo alternativo ao atual. Ernesto Galvão aposta num modelo como esse para o futuro da publicação científica, desde que o sistema tenha um mecanismo de validação da qualidade dos artigos. “Acredito que outros modelos para publicação são possíveis, que combinem algum tipo de julgamento por pares e um baixo custo de disseminação”, disse o físico.
Em defesa da Elsevier
A editora divulgou no início do mês um comunicado não assinado em que defende que as editoras são necessárias para o bom funcionamento da ciência. “Sem as editoras e os revisores, os 3 milhões de artigos enviados todo ano às revistas científicas não seriam transformados no 1,5 milhão de artigos publicado todo ano”, diz o comunicado. “Os pesquisadores funcionam de forma mais eficiente e efetiva por causa do valor agregado por todos nós através dos processos de publicação.”
O economista David Stern, editor da revista Ecological Economics, publicada pela Elsevier, também saiu em defesa da editora em seu blog. Para ele, não faz sentido o argumento segundo o qual pagar pelos artigos científicos significa pagar em dobro pela ciência que já havia sido financiada com recursos públicos. “A Elsevier é como o Walmart, eles distribuem o produto e isso custa dinheiro”, afirmou Stern. “Não vejo por que usar dinheiro público para pagar à PLoS para publicar um artigo seja moralmente melhor do que usá-lo para que uma biblioteca universitária assine um periódico. Os custos têm que ser pagos de uma forma ou de outra.”
Correção: é mais preciso definir a Elsevier como um grupo multinacional sediado na Holanda do que como uma editora holandesa, como afirmava a primeira versão do post. O texto foi atualizado em 10/02/2012 para retificar essa informação.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O verdadeiro poder das bibliotecas


Revista Piauí, n. 65, fev. 2012 – seção Esquina p. 8-9.

Livros brotam no sertão
Na Bahia, o povoado com a maior taxa de exemplares por habitante do Brasil
por Rodrigo Sombra

O povoado de São José do Paiaiá, no sertão baiano, tem 500 moradores, igreja, escola, praça e duas ruas. “Na de cima, mora a elite; na de baixo, a classe trabalhadora”, descreveu o historiador Geraldo Moreira Prado, 71 anos, o filho mais ilustre e ilustrado da terra. De cada dez habitantes de Paiaiá, três são analfabetos. Metade da população vive na pobreza, com renda de pouco mais de 200 reais por família a cada mês. Quatro famílias formam a elite local.

Numa região de casas geminadas, ruas de pedra e terra, poucos empregos e quase nenhum saneamento, a soberba taxa de 200 livros por habitante – a média nacional não chega a cinco – é a obra local mais frondosa, graças à Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado. Está sediada em um rudemente majestoso prédio de três andares, o único daquela área da caatinga. Já foi apelidado de “Empire State of Paiaiá”, reunindo os quase 100 mil livros, segundo a contagem oficial, da autodeclarada “maior biblioteca rural do mundo”.

Geraldo Moreira Prado alfabetizou-se aos 10 anos, tendo livros de cordel como cartilha. Pisou pela primeira vez numa biblioteca aos 14. Aos 21, mudou-se para São Paulo. Foi a princípio para trabalhar, mas acabou cursando história e depois letras na USP. Militou no movimento estudantil, no qual se especializou na fabricação de coquetéis molotov para serem lançados contra os agentes da ditadura durante os protestos de 1968. Amargou quatro detenções por perturbação da ordem e propagação de ideias comunistas. Mudou-se para o Rio, onde se doutorou em desenvolvimento agrário, virou professor universitário e pesquisador.

Casou-se. E depois se descasou, momento em que viu a necessidade de se desfazer de uma coleção de então 30 mil livros. Tentou vendê-la, mas sebo nenhum quis lhe pagar a contento. Pensou em doá-la para uma universidade pública, mas as tratativas não caminharam bem. Lembrou-se da querida terra natal, São José do Paiaiá, um povoado do município de Nova Soure, a 250 quilômetros de Salvador.

Contatou um sobrinho adolescente morador de Paiaiá, alugou uma casa e despachou a primeira leva de 10 mil livros, transportados num caminhão. Passava das quatro e meia da manhã quando José Arivaldo Prado – o sobrinho de Geraldo, conhecido como Vadinho – deixou o forno da padaria onde trabalhava para assistir ao desembarque dos livros. Juntou gente para acompanhar a novidade. As primeiras centenas de volumes foram abrigadas na garagem da casa alugada.

O sucesso da operação estimulou um segundo lote de livros, algo perto dos 12 mil exemplares. Mas a vizinhança fora alertada pelo Jornal Nacional sobre um furto de obras raras ocorrido em 2003 na Biblioteca do Itamaraty, na região central do Rio de Janeiro, a mais de 1 700 quilômetros dali. Quando uma senhora assistiu à chegada de mais livros – itens raros no sertão –, tratou de denunciar à polícia, convicta de que se tratava das obras furtadas do Itamaraty que vira na televisão.

Desfeito o equívoco, a recém-transferida biblioteca teve de enfrentar o pároco local, ouriçado pela procura de obras como Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado. Abriu o sermão numa manhã de domingo advertindo os fiéis sobre a maledicência dispersa nas estantes de aço pecaminosas da casa vizinha à paróquia. Apesar das resistências religiosas e policiais, os demais livros foram enviados pouco a pouco. A biblioteca comunitária ganhou vida e foi batizada com o nome de uma tia do historiador que se dedicara a lecionar no povoado, professora de formação autodidata que era.

A biblioteca cobra 1,50 real de mensalidade, com direito a carteira de leitor associado. As doações foram aumentando e houve necessidade de mais espaço, o que obrigou a construção do “Empire State”. Vadinho, o bibliotecário improvisado, crescido entre tantos livros, abandonou a padaria, cursou letras e descobriu-se poeta. “Escrevo poemas, mas só sobre gatos”, disse.

Cajueirinho, Carrapatinho, Pau de Colher, Cabeleiro e Melancia são povoados vizinhos que mandam alunos para a escolinha de xadrez, para o ateliê de pintura ou para cursos como “Higienização e acondicionamento do acervo Professor Geraldo Prado”, oferecido em dois módulos.

A organização das estantes às vezes surpreende. A Divina Comédia divide prateleira com aMetodologia Aplicada à Administração. Elogio da Sombra, de Jorge Luis Borges, é vizinho deInternet Truques Espertos: Segredos Inteligentes Revelados. A biblioteca possui alguns volumes raros, como a primeira edição de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933, e as obras completas de Molière, com data de impressão de 1732.

Sem apoio da prefeitura de Nova Soure, dependente dos inconstantes repasses do programa do Ministério da Cultura, a biblioteca é deficitária e recebe colaborações de bom grado.

No ano passado, o crítico literário Antonio Candido, ex-professor de Geraldo Prado na USP, doou títulos de seu acervo pessoal para os moradores de Paiaiá. Acompanhava o envio dos livros uma carta de saudação, emoldurada e colocada em destaque no interior da biblioteca. “Venho por meio desta comunicar-lhe que despachei dez caixas contendo livros e alguns opúsculos, no total de 300 unidades, que constituem uma doação à Biblioteca Comunitária”, datilografou o crítico, em um papel azul, devidamente corrigido à caneta e assinado.

“Informado há tempos a respeito dela por nossa amiga Walnice Nogueira Galvão (que aliás teve a gentileza de me acompanhar à empresa transportadora), avaliei desde logo o alcance e a importância dessa obra cultural, devida à sua iniciativa generosa e clarividente; e tencionei colaborar de algum modo, o que faço agora com prazer e é a oportunidade de manifestar a minha admiração pelo seu trabalho.”

Outra frase atribuída a Antonio Candido já havia sido estampada na fachada da biblioteca. Em azul, lia-se: “O socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo.” “Eu ia até botar uma do Marx, mas aí achei que já era dar muita bandeira”, acautelou-se Geraldo Prado. Na última reforma da biblioteca, um pintor conhecido como Magnata fez pouco caso da encomenda – repintar o que ali já estava e adicionar uma proverbial citação de Che Guevara. Pediu um adiantamento pela primeira demão de tinta, embolsou o dinheiro e sem aviso prévio comprou um bilhete só de ida para São Paulo, deixando a fachada da Biblioteca Maria das Neves branca como lhe sugere o nome.

--------------------//--------------------

Conheço o professor Geraldo desde criança, considero-o o meu pai intelectual, sendo assim, conheço também boa parte da história da biblioteca, inclusive por ter encaixotado boa parte desses itens.

Numa conversa com o professor ele me disse que além dos fatos mencionados na reportagem, a biblioteca fez o comércio local se desenvolver, com o surgimento de lanchonetes para alimentar aqueles que tem fome de leitura... A cidade vem se tornando um pólo de cultura no interior baiano e pessoas, até mesmo de Salvador (que na posição de capital, espera-se que tenha acervos mais completos), vão à biblioteca em busca de itens que possam satisfazer suas necessidades.


Sendo assim, aí reside o verdadeiro poder das bibliotecas, de causar mudanças, de criar e modificar espaços, enfim, de modificar estruturas, sejam elas quais forem...


Fico honrado de poder ter visto o nascimento da biblioteca e estar acompanhando a sua evolução. Ah, professor, não esqueci que tô devendo uma visita não, hein.

PS: para saber mais sobre a história do professor Geraldo visite a Biblioo.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Bibliotecas e cemitérios

Estranho o título do post, não???

Por que afinal resolvi fazer um post com esse título? Bom, tenho feito muitas leituras, principalmente em função da dissertação. Hoje, estava lendo o livro "O poder das Bibliotecas" e me deparei com a informação de que algumas bibliotecas, até o advento bibliográfico do século XVII, organizavam suas coleções de acordo com os  antigos proprietários desta, mantendo sua integridade bibliográfica (no sentido amplo e não restrito apenas a livros). Fiquei mais interessando ainda pelo texto quando achei a citação de uma lei chamada de "Lei da boa vizinhança", somente citada por um autor, que não me recordo qual. De imediato lembrei-me de algumas brincadeiras que fazia em conjunto com outros estagiários quando trabalhávamos na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, onde as coleções são ordenadas de acordo com a sua origem, ou como chamam os arquivistas, procedência. Assim, a Coleção do Lima Barreto, reúne a documentação que pertenceu ao escritor, bem como a de Martins Pena, Gustavo Corção etc.

Porém, sempre fazíamos uma ressalva, que algumas coleções não podiam ficar ao lado de outras, pois tais personalidades eram desafetos na vida pública, claro que falávamos em tom jocoso, até mesmo pelas localização dos itens já estarem consagradas há décadas. Enfim, mesmo que não no mesmo sentido utilizado no texto, buscávamos fazer valer a "Lei da boa vizinhança".

Voltando à situação dos acervos serem organizados de acordo com a sua procedência, o mesmo texto menciona que a partir do advento Bibliográfico, a classificação foi largamente implementada e tal organização caiu em desuso.

Por incrível que pareça, a representação que me veio a mente foi a de um cemitério, sobretudo, ao lembrar-me de uma igreja na República Tcheca, que tem sua decoração feita a partir de osso humanos. A Igreja da cidade de Kutná Hora (http://www.kostnice.cz/).


A história diz que durante umas das muitas pestes e guerras enfrentadas pela Europa, não havia mais locais no cemitério para enterrar mais corpos, então os que já estavam lá há anos ou séculos foram exumados e guardados na igreja que fica ao centro do cemitério. Alguns anos depois a decoração de toda a igreja, incluindo o mobiliário foi feita com os ossos dos exumados.

Tá, mas o que isso tem a ver com livros? Bom, vamos viajar um pouco: as coleções, quando ordenadas de acordo com a ordem dada por seu antigo custodiador constitui-se no seu corpo, numa analogia com os cemitério. Com o advento das Bibliografias, várias dessas coleções foram desmembradas, bem como os ossos das igrejas e reordenadas sob novos critérios, bem como, de novo, os ossos... Assim, novas configurações foram dadas aos itens colecionados, sejam por Igrejas, Cemitérios ou Bibliotecas.

Considerei legal compartilhar com vocês essa viagem sóbria, já que como defensor da totalidade das coleções (porém, não cego, pois sei das dificuldades que permanecer a íntegra das coleções acarreta, entretanto, não entrarei no mérito). Creio que daí evoluem os estudos sobre biblioteca, informação, arquivos, acervos, museus, das viagens com os pés no chão que realizamos. E uma curiosidade é que os cemitérios são ótimos locais para se começarem as pesquisas...

PS: Nenhuma droga, bebida ou derivados foi utilizada durante a leitura ou construção do texto.
PS 2: o texto pode ter certas incoerências pois o cansaço aflige a mente do ser que vos escreve.